A COMPULSÃO À LINGUAGEM NA PSICANÁLISE:
TEORIA LACANIANA E PSICANÁLISE PRAGMÁTICA
(Excerto da capa, resumo, índice e apresentação)
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Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de Filosofia do
Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas
sob a orientação do Prof. Dr.
Osmyr Faria Gabbi Júnior.
Este exemplar corresponde à redação final
da Tese defendida e aprovada pela Comissão
Julgadora em 08 /07/ 2004
BANCA
TITULARES
Prof. Dr. Osmyr Faria Gabbi Júnior (orientador - IFCH/UNICAMP)
Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva (USP)
Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Júnior (IFCH/UNICAMP)
Prof. Dr. Richard Theisen Simanke (UFSCAR)
Prof. Dr. Zeljko Loparic (IFCH/UNICAMP)
SUPLENTES
Prof. Dr. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi (IFCH/UNICAMP)
Prof. Dr. Marcos Severino Nobre (IFCH/UNICAMP)
Julho/2004
Resumo
Este trabalho é uma exposição crítica de elos
conceituais manifestos pela teoria de Lacan e
pela psicanálise pragmática, esta última circunscrita
a publicações de Marcia Cavell e de Jurandir Freire
Costa. Sem descuidar a investigação exegética,
pretende-se aqui apresentar uma visão panorâmica
das composições conceituais e dos sentidos que adquirem
as palavras no conjunto de cada prática teórica. As
duas espécies de teorias psicanalíticas - aqui denominadas
como "psicanálises lingüísticas" - recorrem a certas
concepções de linguagem como forma de resolução de problemas
metafísicos e clínicos herdados da teoria de Freud.
Seu comportamento, no entanto, é tratado como compulsivo,
uma vez que essas práticas teóricas obedecem cegamente a
um conjunto de técnicas e procedimentos incorporados à
ação de sanear a velha teoria de impurezas conceituais.
Como alternativa à concepção referencialista da linguagem,
pressuposta por Freud, Lacan utilizou uma concepção
idealista, e a psicanálise pragmática, uma concepção
comportamental, para cumprir suas respectivas tarefas.
O trabalho consiste em questionar a substancialização
da linguagem, no caso de Lacan, e o desvio mentalista
e mecanicista, no caso da psicanálise pragmática.
Aparentemente, nada indica que a clínica necessitasse
de tais supostos, nem que estas teorias não houvessem
introduzido novos problemas metafísicos.
Abstract
This work is a critical exposition of conceptual
links manifested by both the Lacanian theory and the
Pragmatic Psychoanalysis, the latter circumscribed
to texts Marcia Cavell and Jurandir Freire
Costa. It is intended to get a panoramic presentation
from the conceptual composition and the meanings that
the words acquire in the whole of each theoretical
practice, without overlooking the exegetical investigation.
The two types of psychoanalytical theory - here denominated
as "linguistic psychoanalysis" - appeal to certain conceptions
of language as form of resolution of metaphysical and
clinical problems inherited from Freudian theory.
Nonetheless, their behaviour are treated as compulsive,
inasmuch as their theoretical practice blindly obey to
a set of technics and procedures incorporated to the
action of cleaning the older theory from conceptual
impurities. As alternative to the referential conception
of language presupposed by Freud, Lacan employed an idealist
conception, and the Pragmatic Psychoanalysis resorted to a
behavioral point of view, to accomplish their respective
tasks. The work consists in questioning Lacan’s
substantialization of language, and the mentalism
and mecanicism presented in the Pragmatic Psychoanalysis
case. Nothing seems to indicate that clinics would need
such resorts, nor that those theories would not introduced
new metaphysical problems.
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Índice
Apresentação
Capítulo I: A Compulsão à Linguagem na Psicanálise
A Vontade de Purificação
A Compulsão à Linguagem
Tipos de Concepção de Linguagem
Tipos de Externalismo
Objetivos do Trabalho
Psicanálise Lacaniana
Psicanálise Pragmática
Ações sem Pensamento
Capítulo II: Lacan e o Desejo do Desejo de Kojève
Os Princípios da Agonística Geral
O Desejo Tomado pelo Negativo
A Luta de Morte pelo Puro Prestígio
O Real de Kojève
A Negatividade Explicativa
O Interesse de Lacan por Kojève
A Determinação Causal da Subjetividade
O Ideal de "Completude"
Capítulo III: Os Sentidos do Significante
A Primazia do Simbólico
Do Mito Coletivo ao Individual
A Primazia do Significante
Foraclusão
Nome-do-Pai
Falo
O Que Pode Ser a Existência?
As Sentenças Existenciais de Lacan
A Existência do Significante
Capítulo IV: O Paradoxo da Interpretação
Linguagem como Comportamento
O Sujeito e a Psicanálise do Pragmatismo
Razões como Causas
Ações Irracionais
Há Metafísica Bastante
Conclusão
Bibliografia
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Apresentação
O que denomino como “compulsão” nada tem
a ver com a espécie de comportamento
sobejamente reconhecida pelos psicanalistas
como uma conduta incoercível, na qual a
vontade revela-se como impotente e a liberdade
aparece como ilusão. O que se distingue e
circunscreve neste enquadramento são aqueles
comportamentos que, sem razão aparente,
convertem-se de atividades prazerosas,
comedidas ou necessárias, a imperativos
tenazmente irrefreáveis, acima de qualquer
grau de razoabilidade ou de bom-senso. De
cuidados de higiene, devoções religiosas,
distrações inconseqüentes, passatempos, para
ações tomadas por uma força desmedida de
impulsividade, como jogar até perder todo
o dinheiro, não poder deixar de ter relações
sexuais com estranhos, lavar as mãos a cada
instante até o ponto de lastimar-se fisicamente,
torturar-se com idéias fixas de culpa ou de
terror pela punição divina, ingerir alimentos
acima da capacidade natural e sem qualquer
controle. A psicanálise tende a buscar as
causas inconscientes deste tipo de arroubo
incontrolável da vontade, para que o sujeito
se veja livre do que supostamente o subjuga.
Este tipo de compulsão implica claramente a
existência de um sofrimento; o indivíduo sofre
porque tem consciência do que resulta do fato
de não mais deter o comando de sua própria
vida, de não mais poder direcioná-la pelos
caminhos que ele mesmo escolheu, mas de ser
obrigado a fazer o que não quer e o que não
lhe representa. A ação ingovernável não lhe
serve, não o socorre, não lhe faz progredir,
e, sobretudo, lhe causa imenso prejuízo físico
e moral. O sofrimento advém de não lhe ser
facultado nenhum poder de interditar o que
sabidamente reprova. No filme “Despedida em
Las Vegas” (1995), do diretor Mike Figgis, o
personagem Ben, vivido por Nicolas Cage, pergunta
à Sera, o personagem de Elisabeth Shue, – “Você
tem certeza de que quer que eu more em sua casa?”.
A pergunta explica-se pelo fato de que Ben era
alcoólico e conhecia perfeitamente todas as
terríveis conseqüências de uma vida compulsiva.
O que os psicanalistas reconhecem como “compulsão”
tem, precisamente, este componente de consciência
do fato e do sofrimento demonstrados pelo
personagem de Nicolas Cage; e o serviço que eles
oferecem é o de tentar encontrar o que estaria
oculto por detrás das aparências, o fator invisível
que explicaria o comportamento aparentemente
irracional.
A compulsão a que me refiro não está vinculada a nada oculto,
e é uma atividade exercida de modo completamente cego, repetitivo
e inexorável. Trata-se de um poder que se faz sentir
na própria atividade da linguagem, uma ação
automatizada que produz a maneira como afiguramos
o sentido de certas palavras, os modos pelos quais
compreendemos determinados assuntos, os arranjos
mediante os quais enquadramos e idealizamos nossas
tarefas e as executamos. Podemos, por exemplo, tratar
de buscar “o que está oculto por detrás das aparências”,
e este se tornaria, como muitos outros, um comportamento
lingüístico compulsivo, pois um modo de expressão iria
caracterizar, desta forma, um tipo de conduta claramente
coagida pelo fascínio provocado por este particular
arranjo comportamental do sentido. Uma vez,
referindo-se ao Tractatus
Logico-Philosophicus, sua primeira obra, Wittgenstein disse: [1]
Uma imagem nos havia aprisionado.
E não podíamos escapar porque ela estava na nossa linguagem, e
esta parecia reiterá-la inexoravelmente para nós.
Por que nos aprisionam determinadas imagens?
Simplesmente porque nos ensinaram e aprendemos assim; assim começamos a praticar e a fazer, e
tornou-se um hábito, mais um dos tantos vícios dos quais
nos apropriamos, e que, depois de um certo tempo, já
incorporada a ocupação, já não mais sabemos se somos nós
que nos ocupamos de um ofício ou se é o ofício que se
ocupa de nós. Os lacanianos aprenderam a utilizar,
por exemplo, a palavra “desejo” sempre em correlação
com uma “falta”, um “vazio” ou um “nada”. Ninguém
se pergunta o que é esta falta, nem por quê ela deve estar ali. É um modo acostumado e automático
de dizer certas coisas. Na realidade, depois de incorporadas,
as expressões, sem que haja necessidade de uma
voz de comando, atuam como injunções ou como influências
coercitivas de leis, costumes, regras ou práticas.
Quando os lacanianos falam da “materialidade
significante”, de que “o significante precede
e determina o significado”, da “linguagem como
corpo sutil”, de “suprir a falta no Outro”, do “advento
do sujeito pela aquisição da linguagem”, da “divisão
fundamental do sujeito”, e mais outras incontáveis
expressões comportamentais, estão, ao mesmo tempo,
circunscrevendo o pertencimento de uma pessoa a uma
comunidade lingüística e emitindo palavras de ordem.
Isto também acontece, naturalmente, com as expressões
da psicanálise pragmática, embora ela não tenha
tido ainda o tempo suficiente para formar uma “comunidade
lingüística”, no pleno sentido da palavra. Ela se
refere ao “sujeito” como “uma descrição em termos de
crenças e desejos”, pensa que “uma ação é algo feito
para satisfazer um desejo”, acha que a psicanálise
faz “análise dos sujeitos e seus desejos”, e acredita
que motivos ou razões são “causadores de ações”. Estas
são, de igual modo, imagens aprisionadoras.
O que há de curioso no comportamento dessas teorias
é que elas tipificam o que denomino como “psicanálises lingüísticas”.
São teorias que defendem a idéia de que há uma concepção de
linguagem aplicável à psicanálise e à clínica psicanalítica. Melhor
dito,
são, na verdade, teorias que, mais que correlacionar, dão corpo à psicanálise por meio de uma concepção de linguagem.
Não são teorias que apenas dizem que a
linguagem é uma parte importante, ou a parte
mais importante, da teoria ou da
clínica psicanalíticas. Não deveriam ter, por isto,
consciência do fascínio que
exercem sobre si suas próprias formas de expressão?
Minha resposta é que não.
A compulsão lingüística caracteriza-se por não ter consciência,
assim como não há consciência no jogador de futebol
quando salta na área
para cabecear a bola para dentro do gol. Refiro-me à
consciência do que se
está fazendo quando se está no meio da atuação.
O jogador não pensa nas regras do futebol quando cabeceia,
tampouco pensa na sua postura corporal ou em qualquer
outra coisa, simplesmente o faz. Trata-se de “instinto”
ou de “reação”. Pensar ou discutir regras de futebol,
de xadrez ou de tênis, não é jogar futebol, xadrez ou
tênis; é outra tarefa, outra ocupação. O jogador de xadrez
não se perguntará o que significa um “peão”, uma “torre”
ou um “bispo”; apenas, e tão somente, jogará xadrez.
Se pensar no movimento das suas mãos ao deslocar uma
peça não estará jogando xadrez, mas examinando o
movimento das suas mãos sob o ponto de vista estético,
ortopédico, para lembrar de fatos passados, ou qualquer
outra atividade composta de reações naturalmente aprendidas.
O ponto não é que o jogador só possa
jogar seu jogo, nem que só possa fazê-lo de uma só maneira,
mas que quando joga o seu jogo desempenha uma só
atividade, e só o faz pelo método aprendido
e pelo modo acostumado. O protótipo é Fernando Pessoa,
que podia escrever como o próprio e como, pelo menos, mais
três pessoas diferentes. Mas cada pessoa escrevia como ela
mesma, sem confundir-se com outro heterônimo.
Na verdade, a compulsão lingüística é uma visão
exclusiva para uma certa configuração ou ordem de sentido, e
uma cegueira para outras conexões ou arranjos dos elementos
da mesma realidade.
Todo o esforço empreendido neste trabalho consiste
em ver outras conexões, ampliar o vocabulário.
As pessoas que se convencerem pelo
raciocínio estarão enxergando estas teorias, e, por conseguinte, também
a psicanálise, sob outro aspecto. Estarão vendo o que aqueles que estão
sob a coerção de velhos hábitos nunca poderão perceber senão por uma
“modificação gramatical”.[2]
Como seria a compulsão lingüística das psicanálises lingüísticas?
A idéia que defendo neste trabalho é que a atividade particular desses
dois tipos de teoria psicanalítica foi a de lançar mão de determinadas
filosofias da linguagem para resolver o problema da contaminação metafísica
da teoria freudiana. A teoria de Lacan empregou uma concepção idealista de
linguagem com o propósito de instituir uma forma de cientificidade possível
para a psicanálise: Lacan dessubstancializou os conceitos abstratos da teoria
freudiana e os compreendeu de maneira externalista, relacional e indireta. A
psicanálise pragmática, representada aqui pelos trabalhos de Marcia Cavell e
de Jurandir Freire Costa, utilizou uma concepção comportamentalista da linguagem
para estabecer uma espécie de psicologia descritiva baseada numa suposta
objetividade pragmática da interpretação nas atitudes proposicionais. A psicanálise
pragmática também é externalista e relacional na compreensão dos fatos
psicológicos, porém, à diferença da teoria lacaniana, é direta, pois tais fatos
não estão ali dissociados de qualquer aspecto da linguagem.
O parâmetro de análise e crítica das filosofias da
linguagem utilizadas por essas teorias é, na sua maior
parte, formado pelas discussões de Wittgenstein sobre
a psicologia e sobre a linguagem. Não há, entretanto,
aqui presente - nem se pretende que haja - uma filosofia
da linguagem de Wittgenstein. Entende-se que a crítica
wittgensteiniana da psicanálise tem outros interesses e
faz-se em direções distintas.[3] Este trabalho não reflete a sua filosofia, nem a sua crítica
da psicanálise, nem lhe pretende ser fiel: apenas utiliza
alguns de seus instrumentos conceituais ao lado de outros,
retirados de outras filosofias, para examinar o comportamento
dessas teorias psicanalíticas como saneamento de equívocos
metafísicos.
Pode-se discutir prodigamente sobre o conceito de metafísica
e suas conseqüências numa teoria particular como a psicanálise.
Neste trabalho, deixo de lado, ademais, o exame proposicional
da matéria para concentrar-me somente no seu uso dentro das
teorias. Há três tipos de emprego de conceitos metafísicos
no interior da prática teórica da psicanálise. O primeiro,
como elemento espúrio a ser eliminado. Quanto a este procedimento
de constituição de conceitos válidos deve-se observar, no
entanto, que a palavra "metafísica" significa coisas diferentes
nas teorias de Freud, de Lacan e da psicanálise pragmática.
Freud pensava evitá-la atendo-se rigorosamente aos padrões de
cientificidade das ciências naturais, e tratando os fatos
psicológicos como concomitantes de forças físicas provenientes
da experiência. Lacan, por sua vez, evitava o mito da
interioridade ao referir os fatos psicológicos a relações
sociais reduzidas a aspectos formais da linguagem. E a
psicanálise pragmática procurava não substancializar a própria
linguagem. Neste sentido, descrevo as duas psicanálises
lingüísticas como intentos de remoção de elementos desnecessários
para a teoria, segundo critérios próprios. Nos dois casos, a
maneira de purificar a teoria faz-se mediante a adesão a uma
concepção ideal de linguagem. Esta concepção ideal de linguagem
cumpre o papel de fornecer o padrão correto de uso dos conceitos
da teoria psicanalítica. Deste modo, as duas teorias
psicanalíticas são descritas como maneiras de pensar, e não,
como de costume, nos termos do resultado de um pensamento. Isto
quer dizer que o esforço aqui empreendido vai no sentido de
iluminar os procedimentos utilizados na formação das teorias
e entrever os processos de composição dos conceitos em relação
aos fins que visam atingir, e não no sentido de aferir o acerto
ou a precisão do que foi apresentado como proposição correta.
A segunda maneira de conceber-se a metafísica no interior
da prática teórica da psicanálise refere-se a certas pressuposições
gramaticais que não podem ser tomadas como conhecimento, uma vez
que não podem ser objeto de justificação nem de dúvida no seu
papel de fundamento da ação.[4] Tratam-se de
"certezas comportamentais", partes de um modo de agir instintivo
em conformidade com regras, uma vez que nossos jogos de
linguagem só podem ser praticados sobre um pano de fundo
de proposições básicas relativamente permanentes. Não se
pode duvidar de um padrão de medida, por exemplo; pode-se
suspeitar que uma fita métrica ou uma régua não estejam de
acordo com o padrão, se por acaso uma medição não se
confirmar pela prova. Protestar contra o metro como
padrão de medida não faria o menor sentido. Ele faz parte
de uma gramática que informa uma certa atividade de medição.
O padrão, simplesmente, se aplica. Do mesmo modo, não se
pode duvidar de que haja objetos diante de nós, de que
nossos corpos estejam compostos de dois braços e duas pernas,
ou de que estejamos vivos, uma vez que tais certezas servem
como pressupostos para o uso de toda uma rede de crenças
interligadas, as quais não fariam sentido na ausência de
padrões básicos. Em outros termos, para que um conjunto de
crenças possa ser posto em dúvida ou verificado é preciso
haver a instituição de padrões de verificação. Estes estão
além de qualquer dúvida. Evidentemente, as certezas não
são axiomas de acordo com os quais se deduz a verdade das
crenças, porque estas certezas não são propriamente crenças
ou conhecimentos, mas, antes, formas de vida. Trata-se,
neste caso, de uma espécie de metafísica descritiva suposta
pelos jogos de linguagem.
A terceira forma de conceber-se a metafísica no interior
de uma prática teórica refere-se à metafísica especulativa.
Esta resulta numa falta de sentido ou numa conclusão
absurda segundo os critérios de uma determinada atividade
prática. Para Wittgenstein, "a questão metafísica sempre aparece
como problema factual quando na realidade é conceitual".[5] Aqui temos os clássicos casos de
entrecruzamento entre regras habituais e regras desviantes,
ou de uso de termos que permanecem sem explicação e são
ininteligíveis, ou simplesmente o desconhecimento conveniente
da utilização de padrões técnicos, tomando-os como meras
operações naturais. Tomar o significado como depedente das
leis de diferenciação do significante, o desejo como suposto
de uma falta, as ações como expressões de uma racionalidade
subjacente, e as razões e motivos como causas de comportamento
são formas de metafísica especulativa que cumpre esclarecer e
dissolver pela análise.
As duas teorias psicanalíticas aqui em pauta são vistas
como ações contra a primeira acepção da palavra metafísica,
fundamentadas na segunda acepção, cuja análise permite
divisar a presença da terceira acepção. As três acepções
ou usos teóricos da palavra "metafísica" na prática teórica
da psicanálise redundam, finalmente, em somente duas formas
conceituais, já que a primeira acepção é semelhante à terceira,
quando a maneira de expurgar a especulação metafísica
realiza-se com base numa metafísica especulativa. Do ponto
de vista conceitual, neste trabalho, temos, por este motivo,
somente as formas dogmáticas e operatórias da metafísica.
Como práticas teóricas, as duas psicanálises lingüísticas
são vistas sob o seu aspecto compulsivo. Sua adesão a uma
concepção de linguagem é parte do seu programa de remoção
de impurezas. Trata-se da incorporação de uma técnica a
uma prática, apresentada como vontade de purificação. A
técnica e a prática devem ser necessariamente feitas como
um conjunto de procedimentos determinado para uma certa
aplicação; não como qualquer procedimento, porque somente
assim a ação teórica teria um sentido. Existe, portanto, a
instituição de um padrão de correção, e uma correspondente
forma de coerção para agir da maneira correta, as quais definem,
no seu conjunto, o sentido numa prática teórica.
O capítulo inicial deste trabalho, denominado
"A compulsão à linguagem na psicanálise", tenta demarcar
todo o enquadramento teórico pressuposto neste exercício
analítico, a maneira como esta análise será aplicada a
cada uma das duas teorias, e procura esclarecer os
objetivos imediato e final da tese. Trata-se de uma
introdução ao trabalho, cuja intenção é fornecer em
detalhes os critérios do mapeamento que a visão de aspecto
aqui assumida distingue nos objetos que examina.
A seguir, dois capítulos são dedicados à teoria de Lacan.
No primeiro deles, cujo título é "Lacan e o desejo do desejo de
Kojève", examino o cerne idealista desta psicanálise e os motivos
do seu interesse por este tipo de abordagem. Trata-se da fase
inicial da sua teoria, e este arranjo é o nascedouro da tentativa de
tornar a psicanálise uma forma de psicologia concreta e científica
pela versão kojeviana. Ali explico por que Lacan adicionou Kojève
a Politzer, por que foi preciso uma definição unívoca de desejo
para realizar uma ciência psicanalítica, por que a ontologia
lacaniana é a da "falta a ser", mas não pode ser a do "ser em
falta", e por que teria que haver, necessariamente, uma
concepção idealista da linguagem. Já no outro capítulo,
intitulado "Os sentidos do significante", examino fases
correspondentes a duas distintas compreensões do papel do
suporte formal das relações sígnicas, correspondentes a
diferentes modelos de cientificidade. A idéia é mostrar que
o ideal de redução a uma entidade abstrata depende do sentido
e da prática a ela destinado dentro de um determinado contexto.
No primeiro contexto, o modelo de cientificidade é a lingüística
estruturalista, e o significante é pensado como o elemento
simbólico mínimo constitutivo do vazio e da necessidade de
preenchê-lo. No segundo contexto, o modelo de cientificidade
é o próprio discurso da psicanálise, como exceção, e o
significante é pensado como constitutivo da mortificação
do gozo e de seu imperativo. As duas concepções do significante
explicam como a subjetividade, um resto vazio de uma relação
lingüística assimétrica, liga-se à impessoal e indiferente
linguagem. Para Lacan, ao que parece, é mais importante, em
nome da objetividade, entender que a aquisição da linguagem
faz não com que o sujeito fale mas que a linguagem fale nele.
Em nome da clínica, porém, deve-se fazer com que o sujeito
fale na linguagem que nele fala. O problema deste trabalho
é esclarecer o sentido deste tipo de dissociação.
O capítulo dedicado à análise da psicanálise pragmática
intitula-se "O paradoxo da interpretação". Tenho intenção
de demonstrar que as propostas de Cavell e de Costa
constituem-se como desvios em relação à concepção
comportamental da linguagem. Tratar-se-ia não de um
erro de estratégia, mas de operacionalidade ou manejo
no uso de conceitos como "desejo", "crença" ou "razão".
Neste sentido, Cavell e Costa estariam sendo seduzidos
pelo uso ordinário desses termos em sentido referencial
e mecânico, e deixando o plano manifesto do comportamento
para buscar, por detrás das ações supostamente irracionais,
a sua racionalidade subjacente. Segundo a hipótese, isto
ocorre devido ao pressuposto de que as ações podem ser
justificadas. O resultado da pressuposição é tratar como
sintoma o que deveria ser manejado apenas como critério,
o que leva ao mentalismo e a uma compreensão mecanicista
das ações, nos termos de descrições causais. O privilégio
da primeira pessoa também termina por ser abandonado, neste
caso, posto que não há sentido em pensar em ações automatizadas
por causas senão como movimento ocasionado por um agente que
não mais é o "eu".
As fontes e as soluções propostas na fonte da filosofia
da linguagem da qual esses autores extraíram seu arcabouço
conceitual são passíveis de crítica quando confrontados com
o que poderia ser considerado como um paradoxo da interpretação.
Diante de uma ação, é possível uma infinidade de descrições,
inclusive contraditórias entre si. Então caberia perguntar
qual é o ponto de remoção da metafísica segundo o procedimento
proposto por Cavell e Costa. Aparentemente, a ênfase pragmática
não poderia recair nem sobre a interpretação nem sobre a
racionalidade, mas somente sobre a própria ação como aplicação
cega de regras impessoais no âmbito de uma forma de vida.
O leitor não deixará de notar, certamente, uma disparidade
entre a extensão da análise destinada a Lacan e a dedicada
à psicanálise pragmática. Para o primeiro, são dois capítulos;
para a segunda teoria, representada por dois pensadores,
apenas um capítulo. Devo esclarecer que isto se deve
apenas ao fato de que a apresentação tipicamente obscura
que caracteriza a teoria de Lacan demanda um exame bem
mais detalhado, para que se consiga finalmente expor as fontes
e as sutilezas dos seus argumentos sem fazer-lhe injustiça. A
sua teoria teve um processo de elaboração muito mais demorado
e desencontrado até chegar aos pontos enfocados pela tese.
Este trabalho não é, de modo algum, uma crítica da teoria de
Lacan com um apêndice sobre a psicanálise pragmática.
A única preocupação é iluminar corretamente a compulsão à
linguagem nas duas teorias psicanalíticas de acordo com o
uso que os conceitos têm nos respectivos campos, e, com isto,
contribuir para a discussão epistemológica da psicanálise
em geral.
Por esta razão, alimento, na conclusão deste trabalho,
a esperança e a pretensão de que é possível, à raiz da
crítica às concepções e usos da linguagem nas teorias aqui
examinadas, estabelecer uma suposição sobre a forma em que
a linguagem poderia interessar à psicanálise. Trata-se
literalmente, assim como está escrito, de uma suposição,
uma opinião formada sem comprovação certa e sem demonstração
das hipóteses. Por que construir esta suposição? Porque as
suposições iluminam o pensamento ao fazer variar o sentido
por outros pontos de vista, ao colocá-lo sob a luz de outras
correlações possíveis de serem estabelecidas no aspecto. A
conclusão de uma tese não pode ser, pelas regras, uma proposição
não demonstrada, um signo de afirmação sem o correspondente
argumento; mas nada impede que se sugira para o leitor motivos
para futuras discussões, como, por exemplo, uma hipótese factível
e suficiente para provocar o teste de outras possibilidades de uso
da teoria psicanalítica. Não havendo um ponto de afirmação, nada
impede que uma tese termine com um ponto de interrogação. Haveria
uma concepção de linguagem que atenderia bem aos propósitos
clínicos da psicanálise sem envolvê-la em qualquer dos tipos
de metafísica já criticados nas teorias precedentes? Esta
suposição provoca a necessidade de demonstração, abre a
possibilidade de formular outras proposições, outra tese
a ser defendida com argumentos próprios e adequados. Ela
pode estar equivocada ou certa, não é isto que importa. Mas
importa terminar o trabalho de crítica das psicanálises
lingüísticas sem sugerir a idéia de que o interesse da linguagem
para a psicanálise esteja condenado, ou mesmo que a própria
psicanálise esteja condenada, como inevitável mitologia. A
conclusão deste trabalho pode ser tomada, por isto, no mesmo
sentido da velha metáfora da cabeça bifronte de Janus: uma das
faces olha para dentro do texto, como a suposição sobre a qual
a visão do aspecto nele constituído se apóia, e a outra face
olha para fora, como interrogação sobre um possível
projeto futuro. Por conseguinte, o trabalho estará completo
se pudermos extrair do conjunto da análise aqui exercida
tal suposição, oferecendo ao leitor motivos para uma discussão
acerca do interesse da linguagem para a psicanálise.
-------------- *** ---------------------
[1].
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical investigations. Oxford,
Basil Blackwell, 1953, § 115 (Todas as traduções
de originais citados neste trabalho são de minha
responsabilidade).
[2] .
O leitor deve entender por “gramática” um conjunto
de normas de acordo com as quais uma determinada
prática se desempenha.
[3]. Para tanto,
cf. BOUVERESSE, Jacques. Philosophie, mythologie et
pseudo-science. Wittgenstein lecteur de Freud. Paris,
Editions de L’Eclat, 1996 (1991).
[4]. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. On certainty (Über Gewissheit). New York,
Harper & Row, 1972, § 359. Entenda-se que a palavra "fundamento"
não se refere a nada que possa estar separado de uma prática:
"...uma regra não poderia determinar um modo de agir, pois cada
modo de agir é feito em conformidade com a regra."
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical investigations.
Oxford, Basil Blackwell, 1953, § 201.
[5]. WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks
on the philosophy of psychology, v. I. Oxford, Basil Blackwell,
1980, § 949.